21.12.06

Ditadura do Som: Ipod, Zen Vision e afins mataram a imprevisibilidade

O verão promete esquentar a disputa auricular pelos novos aparelhinhos de mp3. De um lado o iPod mini, da Apple, de outro o Zen Micro, da Creative. Ambos são pequenos, leves, simplificados, reproduzem vídeos (mp4) e tocam entre 12 e 14 horas de música seguida, tempo médio de uma bateria. Escondidos em bolsos, mochilas, pochetes (juro, um mal necessário), carrinhos de bebê ou mesmo acolhidos pela palma da mão, esses verdadeiros titãs da tecnologia são talvez pouco notados nas ruas (o que é bom, principalmente se você for vizinho da Cruzada, no Leblon, ou se é obrigado a passar pela Linha de Gaza, digo, Amarela com freqüência). Mas, do alto de sua pequenez, eles reúnem número cada vez maior de adeptos.

Quem já teve, tem – senão, provavelmente terá – acesso a essas maravilhas sabe o prazer que 80 gigabytes de música podem proporcionar à orelha presente. A click wheel do iPod é uma verdadeira dama. Macia, ágil, sensível, de low action. Não escolhe parceiros: vai de Jobim a Pitty em menos de 720 graus. É a roda da fortuna dos afortunados. Que democrática!


O produto da Creative não deixa por menos. Tem qualidade de vídeo superior (são 262 mil cores contra 65 mil do iPod), proporcionando mais contraste e nitidez, sem contar que é possível transmitir os vídeos pelo aparelho de TV, mesmo nos de alta definição. Puro deleite visual.

Tudo bem. Onze entre dez humanos não
trocam seus fones brancos por nada, nem mesmo por sua... liberdade?! Eis o que quero dizer: não há espaço para a espontaneidade no mundo dessas maravilhas tecnológicas.

Vejam. Assim que se ganha seu primeiro iPod, instala-se o iTunes, empilha-se o máximo de CDs próximo ao computador e, literalmente, atulha-se o maior número de faixas que o seu dinheiro permitir para dentro do aparelho. Tudo para se livrar de um estorvo que só faz peso na prateleira (a Secretaria de
Segurança pública já mexe seus pauzinhos para dar conta dos condenados suportes plásticos da Casa & Vídeo). Na era da praticidade rareiam os espanadores, caíram em desuso pois se chegou à seguinte obviedade: a música é um meio imaterial (sic), inodoro, invisível. E quem teria sido o idiota a inventar que precisamos tirar-lhe a poeira ao menos duas vezes por semana?


Vimos que os iPods da vida não têm cheiro, não sujam, não reclamam espaço na estante. Perto das velhas bolachas de LP, os mp3s são seres independentes, puros, divinos. Esses espíritos de luz própria que vagam pelos ouvidos, contudo, obedecem a uma regra: tocam apenas o que lhe foi injetado, não pensam por si próprio. Os aparelhinhos divinos são burros!

Como não há ninguém por trás da tela de LCD para determinar o que tocará em seguida, os computadorezinhos são largados à própria sorte. E, como o Lula em brincadeira de par ou ímpar, fazem o que lhes foi programado, play next song, please.

Um idiota da objetividade protestaria em favor da vastidão de possibilidades, de opções, que incluem até a opção random (traduzido do inglês significa, entre outras coisas, aleatório, ou ainda sem propósito ou objetivo, sem sentido). Este recurso embaralha as músi
cas e, como o nome propõe, as toca sem ordem pré-estipulada. Uma definição mais avançada do Babylon choca: unpredictable. Vejam como até o dicionário mente, trapaceia, nos burla a paciência. O que há de imprevisível se todas as músicas no playlist “inesperado” foram pré-selecionadas pelo próprio usuário no iTunes? O “mistério” repousa, ainda, na prateleira.


Na contramão do boom de autômatos, o rádio resfolega os últimos suspiros de franqueza. Repousa aí o verdadeiro mistério. Existe uma troca no rádio, do dj para o ouvinte, de ser humano para ser humano, eis a novidade, aí está a surpresa. Os aparelhos de mp3 são solitários, revelam um isolamento compartilhado apenas por aqueles próximos, amigos, vizinhos namoradas etc. etc.

Escutar rádio é se expor ao desconhecido, render-se à surpresa em um mundo de mistérios descartáveis, velozes, tecnológicos. Prova disso é que o rádio prevalece, desde a década de 30, como o principal veículo de comunicação, divertimento e formação cultural no Brasil. Li que os novos Zen Vision da Creative virão com a modulação FM instalada. Mas quem lhe dará atenção, tendo 80 G do próprio gosto para se satisfazer?

1o post!!!

Cortando a fitinha.