31.5.07

A ducha fria alvinegra

Desde garotinho que não sou Botafogo. Nasci Flamengo e, como todo bom rubro-negro, tenho o Vasco como segundo time. Segundo na Copa do Brasil, segundo no carioca, segundo no Campeonato Brasileiro, segundo no Mundial interclubes, e por aí vai.

Mas é por causa do Botafogo que lhes dirigia a palavra. Do Botafogo e dos botafoguenses. Vejam vocês que ontem, ao sair do escritório, no Centro do Rio, arrumei uma condução que passava bem em frente ao Majestoso, o Maracanã. Tinha me esquecido que era quarta-feira, e o Botafogo disputava o jogo de volta da semifinal da Copa do Brasil contra o Figueirense. O alvinegro carioca havia perdido por 2 x 0 em Florianópolis e precisava de pelo menos dois gols para levar a decisão aos pênaltis. Três gols de diferença garantiriam a vaga na final.
Muito bem. E o que isso interessa na viagem de volta para o meu tranqüilo lar em Jacarepaguá, vocês perguntariam? Nada, se o Maracanã não tivesse sido construído bem no meio do caminho entre o trabalho e um banho quente e acolhedoras meias de lã. Ah, sim, estamos no fim de maio e o frio de interior de bolsa térmica que corta o Rio este ano se antecipou às convenções, dando as caras em pleno outono. Para o carioca médio, acostumado às ardências do verão, quando o termômetro da Praça da Bandeira indica 16 graus, isto mais do que justifica um banho quente e as meias de lã.
Dito isso, eis que minha admiração pelo Botafogo só aumentou ao ver aquele repertório de botafoguenses nas ruas. Mães, avós, tios, namoradas, amantes, todos com as mandíbulas dançando de frio rumavam em direção ao Majestoso. E que belo espetáculo é esse estádio. Seus holofotes, quando acesos, podem ser vistos à distância (talvez Santa Cruz), como para sinalizar uma área de pouso de alienígenas (quiçá São Cristóvão). Tinha botafoguense saindo pelo ladrão, chegando de van, de trem, de ônibus. Vi até um torcedor empurrando seu Puma prateado (uma beleza) sem gasolina para dentro de uma vaga sob o viaduto da Uerj.
O circo armado, 64 mil pagantes se esquentando na arquibancada, e só dá Botafogo. O jogo mais parece um duelo de Davi contra Golias. O escrete do Botafogo é infinitamente superior ao do time sulista. Que poderia fazer o Figueirense contra um Zé Roberto, negro potente, habilidoso, imponente, a Alma do Botafogo. Ou contra um Túlio, um esforçado Joílson. Que poderia fazer contra um artilheiro nato, talento escasso no futebol carioca, como Dodô?
Que poderia fazer o Figueirense contra o time mais bem armado, mais bem treinado do Rio, e que além disso carregava o peso de 64 mil mandíbulas sambando de frio e de paixão na arquibancada? Nada. Absolutamente coisa nenhuma. E foi assim que o Botafogo enfiou dois gols no primeiro tempo, sem a menor dificuldade. E olha que a vantagem poderia muito bem ter sido de três, quatro, ou quem sabe cinco. Poderia? Ah, poderia, sim.
Mas observem, eventuais leitores, que os jogadores do Botafogo foram para o intervalo e não voltaram mais. Como se os dois gols da primeira etapa bastassem, o time desandou na segunda como massa de bolo. Largaram as energias em algum canto do vestiário ou do primeiro tempo. Zé Roberto, a Alma do Bota, não tinha mais pernas de tanto que armou, correu, driblou, fez e perdeu gol nos 45 minutos iniciais. Mas foi peça quase nula nos 45 seguintes. Era uma Alma nula. E vejam que, sem sua Alma, o time alvinegro não foi mais o mesmo. Passou o segundo tempo todo como Cleópatra esperando as uvas.
Aí até uma jovem, assustada e – que me corrijam se lhes dirijo baboseiras - inexperiente equipe catarinense entrou no jogo. Seus jogadores, que no primeiro tempo não tiveram a ousadia de cruzar o meio de campo, agora driblavam, acertavam passes, tabelas inteiras. E foi num desses lances menores, um despretensioso chute de fora da área, que o bom goleiro Júlio César engoliu um frangaço daqueles. Teve a hombridade de assumir a ave como responsabilidade sua, mas a eliminação não foi mérito exclusivo do jovem goleiro. Nesta noite de banhos quentes e meias de lã, o time inteiro do Botafogo caiu como uma ducha gelada nos seus torcedores.

23.5.07

A caça e o caçador

"Sonhei que o cervo ileso pedia perdão ao caçador frustrado" - Nemer Ibn El Barud

E não é daí que nascem as grandes amizades?

21.5.07

O fenômeno murundu

O brasileiro não pode ver um apinho de gente que quer logo fazer parte. Para comprovar o fato, basta um atropelado na Rua México, uma tentativa de restituição no INSS ou o Flamengo jogar numa quarta-feira. A multidão, segundo o Aurélio, também pode ser de coisas, como o PF que você pede na padaria da esquina para economizar uns trocados. E quando chega o pedido você se arrepende de ter sido tão pão duro, bate aquela farofa com ovo azeda mais por raiva do que por fome e ainda pede um mate Leão “no copinho, por favor” em protesto.

Na maioria dos casos, os ajuntamentos urbanos são causados por uma quantidade enorme de pessoas que tentam realizar uma mesma tarefa, num mesmo lugar e numa mesma hora. No Rio e em Macau, isto é muito comum no caso do transporte público. Ônibus e trens transportam, diariamente, centenas de milhares de cidadãos de casa para o trabalho, do trabalho para casa, ou de qualquer destes dois lugares para o boteco da esquina.
Uma versão bastante popular das aglomerações se dá no metrô da Cinelândia, de segunda a sexta, entre as 18h e 19h30. É o fenômeno do murundu. Fosse um marciano funcionário raso da Petrobrás a utilizar o metrô pela primeira vez, deixaria o escritório, atravessaria a Praça Floriano e, ao descer as escadas, se depararia com a fila das roletas. Estágio um.
Estágio dois. Passada a fila da roleta e o guarda municipal que acompanha a coleta dos bilhetes com um sorriso sacana nos lábios, o extraterrestre se posicionaria num dos mini-focos de ajuntamentos à beira da linha dos trilhos. Consultando o jornal que não teve tempo de ler durante o dia, observaria, com desconfiança, os dizeres em amarelo no chão: “Atenção com o vão entre o trem e a plataforma”.
Aberta a porta automática, seria atirado de súbito dentro do estágio três, que configura entrar no vagão aos empurrões e cotoveladas. Finalmente, o marciano entenderia que a estação da Cinelândia é repleta de atividades que incluem "vãos", além daquele entre o trem e a plataforma. Tentar se mover é em vão, tentar respirar é em vão, reclamar que o salto da senhora esmaga seu mindinho esquerdo é em vão, tira o dedo daí e vão... E tome murundu sentido Zona Norte.
Uma vez no interior do vagão você deixa de ser você. Segundo as leis do murundu, dois corpos podem e têm que ocupar o mesmo espaço. Tamanho é o aperto, que uma breve coçada de nariz num extremo do vagão, por mais discreta que seja, gera um belo de um cotovelaço no estômago na outra ponta. Se ali começasse uma partida de frescobol, o murundu seria ao mesmo tempo jogadores, bola e raquetes em movimentos constantes e involuntários de vaivém, seguidos de 20 pai-nossos e 13 ave-marias para que o ar-condicionado não quebre no meio do caminho.
O fenômeno murundu também produz seus derivados, entre os quais podemos citar a apalpadela. Praticada, em geral, por homens que aproveitam o entroncamento de corpos para tatear o traseiro alheio – na maioria das vezes pertencente ao sexo oposto, embora isto não seja uma regra – vem sendo mais comum em vagões do metrô. Já há registros de casos em vans.
Normalmente a apalpadela é seguida de um safanão – outro derivado – no apalpador e acompanhada de bolsadas e gritos de “tarado” até que o mesmo seja expulso do vagão. Para solucionar o problema foi criado o vagão feminino, que além de ser freqüentado exclusivamente pelo sexo mencionado e possuir adesivos cor-de-rosa-de-calcinha-velha do lado de fora, é muito útil para constranger homens desavisados.

Como tudo que é bom dura pouco, o murundu salta do trem na estação do Estácio. Vai espalhar sua alegria pela linha 2 de transferência, sentido Pavuna.