16.1.07

O verdadeiro íntimo

Vocês conhecem o Pierre? Magro, alto, piercing no mamilo esquerdo, cavanhaque ralo, Brother... isso, com B maiúsculo, de Big Brother. Me peguei falando nele como se fosse um íntimo, um amigo, um vizinho de porta. Ontem mesmo liguei para um grande amigo, verdadeiro íntimo. Gian Calvi, o homem com sorriso mais Colgate do mundo, me responde do outro lado da linha: “Meu camarada, quanto tempo”. Quase um mês sem nos falarmos e ele me atende com sorriso de anjo.

Conheci Pierre na madrugada de sábado. Uma tentativa de checar os emails, após sair da sessão de meia-noite do Arteplex Botafogo, selou meu destino pelas próximas três horas. Fui bombardeado por ilustres desconhecidos: Fani (como funny, do inglês, ou faniquito, do português mesmo), um híbrido de Bruna Surfistinha com Nestor Kirchner de Nova Iguaçu, se atracou com o alemão Diego, que estava a fim de Irislene (sic), uma interiorana diretamente de Uberlândia para uma latinha de cerveja em algum canto da mansão BBB. Em outro, estava Pierre.

O vi pela primeira vez nos momentos finais da festa Vamp, ao vivo e em tela inteira de plasma do computador. Esparramado na cama, acompanhei Bruno, Liane, Daniel, Analy, Flávia Ayrton etc etc... tipos ordinários como você e eu. Só peguei no sono quando terminou a festa (ou seja, após sessões privadas de vômito dos BBs). Mas eis que, ao ligar a TV na noite seguinte, lá estava ele, Pierre, a quem tratei com a maior intimidade.

Pierre, fã de Cazuza e Tati Quebra-Barraco, é até um rapaz bonitão. Aliás, como 95% dos Brothers atuais. Gente feia não entra na casa do Boninho. O boato que corre é que os feios, que coincidiam de ser também bem pobrinhos, vinham levando as últimas edições do reality. Vejam. Cida, do BB4, era babá. Mara, do BB6, auxiliar de enfermagem na Bahia e lavadeira de roupas oficial da casa. No BB5, deu Jean. Intelectual e homossexual premiado? Ora bolas, e ainda dizem que no Brasil justiça não é feita.

Aparentemente, as duas “qualidades” - pobre e feio -, indesejáveis até para o filho do vizinho, valiam aos Brothers a simpatia imediata do público, tornando as últimas edições do BB um jogo de cartas marcadas.

Para salvar o reality show do marasmo e somar preciosos pontos do Ibope, tomaram outra providência condenável: Arrancaram-nos o direito de mentir. Ou melhor, de mentirem para a gente. Instalaram um detector de mentiras no confessionário. Um ultraje! Não há mais segredos entre o Brother e o espectador. Ele não nos engana mais.

Com a mentira foi-se também o mistério do sorriso maroto, a dúvida da voz trêmula, o suor frio mudará de temperatura. Enfim, foi-se a graça.

Imaginem se a moda pega. O recurso será utilizado em salas de aula, elevadores, áreas de não-fumantes dos maiores escritórios do país, no pescoço do Maluf. Onde for possível instalar uma câmera e um detector de mentiras, a fofoca não estará.

O ser humano é o único ser que mente. Não se vê um casal de pombos na Cinelândia desviando uma porção de milho para dar de comer às suas rolinhas famintas. O tigre, o leão, o sapo, o boi, a foca hão de ser o que são eternamente. Tudo bem que tem muito camaleão desfilando de colarinho branco por aí. Mas são poucos os animais que se falsificam. Ou alguém já viu escândalo do mensalão entre os lêmures de Madagascar? Me pergunto como seria um Valerioduto canino.


-Querido, o Rex voltou a fazer buracos no jardim.

-Não se preocupa amor, é que os abrigos do canil entraram em obra e o Rex precisa de um lugar para esconder os fundos da licitação.

Não sei se me entendem. Mas para os humanos, acabar com a mentira é aflorar um pouco de seu instinto animal. A mentira é o último recurso da verdade.

Essas últimas linhas são escritas enquanto Bial comanda o “paredão” de domingo. Torço para que Pierre não seja eliminado. Odeio perder um amigo.



Leiam também o
Blog do Pierre, quase com o mesmo número de acessos que o meu, óbvio. Para um perfil dos demais participantes, romances, fofocas e afins, visite o site oficial do BBB.

7.1.07

Artistas da Fome

Comer já não é mais instinto, necessidade, virou racionalidade. Leio na última Marie Claire de 2006 que algumas meninas não mais ingerem alimentos por vontade, perderam o gosto – literalmente. Alimentação, vejam só, é inaptidão.

Mas como? Comer talvez seja a maior verdade histórica. Não comer? É antinatural, anti-humano. Encaremos: são antimeninas.


Em vez de restaurantes a R$ 1, no futuro teremos batalhões ensandecidos de meninas nas ruas exigindo estabelecimentos de estética pelo preço mínimo. Claro, o problema deixou finalmente os salões de beleza para tornar-se assunto de saúde pública - “adolescentes vítimas de anorexia mexem com o mundo”, lê-se nas retrospectivas de fim-de-ano.

Que a gordura extra na carne incomoda isso é fato. É fato que a sua ausência também incomoda, principalmente quando vira espetáculo, como no personagem de Kafka. Confinado em uma jaula, o “artista da fome”, incapaz de tragar mera migalha de pão, atraía multidões nas cidades européias. Sua única tristeza era não poder jejuar por mais tempo, uma vez que seu empresário limitava o prazo de abstinência em quarenta dias. À medida que o tempo ia, as pessoas se interessavam por outras formas de diversão, e passaram a ignorar o artista. Até que, confundido com a palha podre da jaula, o artista teve forças para uma confissão ao inspetor de circo:

-Eu queria que vocês me admirassem, mas não deveriam – disse o artista.

-E por que não? – retrucou o inspetor.

-Porque eu nunca encontrei uma comida que gostasse... se tivesse encontrado alguma, acreditem-me, não teria feito toda esta confusão. Teria me empanturrado como você ou qualquer outra pessoa – falou, antes de ser enterrado com a palha apodrecida e dar lugar a uma jovem pantera, bem alimentada, da qual os espectadores não desgrudavam os olhos.

Se fosse nosso contemporâneo, e mulher, o “artista da fome” teria status de cânone da beleza. Visitaria o Faustão aos domingos e contracenaria com a Grazi em “Páginas da Vida”. Volto ao que queria dizer: o mundo de hoje tem algo de Kafka.

Não é necessário ir muito longe. Tratarei os exemplos pelos números, dado que, no ano passado, os obituários o fizeram por pesos e medidas. Ana Carolina Reston, 40 Kg e 1,74m, 21 anos, modelo, vítima de anorexia e de infecção generalizada causada pelo estado de fragilidade extrema. Rosana de Oliveira, 23 anos, manicure, morreu após três anos convivendo com anorexia. Tinha 40Kg e 1,68m. Beatriz Cristina Ferraz, 23 anos, estudante, sofria da doença há quatro anos. Morreu no banho, parada cardíaca, na véspera de Natal. Chegou a pesar 27 kg.

Isto sem falar na uruguaia Luisel Ramos, de 22 anos, que sofreu parada cárdio-respiratória fulminante em pleno desfile. Como que num espelho da doença, depressiva, solitária, escondeu-a do público até o último momento – caiu quando ia da passarela para o camarim.

O irônico é pensar que muitas sequer passaram fome na vida. São filhas da classe média, média-alta, alta, AA, outras bem-sucedidos pilares da moda, saudáveis, cercadas de conforto por todos os lados. Algumas até polpudas em certos momentos da vida. Nunca lhes faltou um prato de filé com batata frita na mesa. Está para nascer uma miserável anoréxica.

Vaidade não escolhe classe. Sei. Se lhes resta um mísero tostão furado no bolso que pague a refeição, contudo, ouve-se logo da mãe desdentada: “As criancinhas na África dariam de tudo para ter esse pouco de comida que você tá recusando”. As mães e suas verdades... desmantelam qualquer um.

Até os 13 anos tive um vizinho chamado Ademardo – ou Adê, para os íntimos. Vejam, já não se fazem mais vizinhos chamados Ademardo, que é nome de vizinho, assim como Oliveira ou Helinho. Também não se fazem mais vizinhas gordas como as de Nelson Rodrigues. Se antes os homens eram magros, olhos esbugalhados, peito cavo, as mulheres tinham que ser gordas. Hoje uma gorda não passa sem um sinal de exclamação ao lado. “Gorda! Gorda!”, repetem em coro.

Como num lampejo de sobriedade, a Marie Claire desprendeu suas folhas da mediocridade que cerca o mercado editorial brasileiro – um abutre que repica mesma carniça, semana após semana, até que o assunto apodreça ou pinte carne fresca – para discutir a anorexia como problema fora das passarelas: o padrão de beleza é imposto a todas as mulheres, não só às modelos. Mesmo que a capa da revista trouxesse estampado o magérrimo furacão almodovariano, Penélope Cruz.


Leio ainda que tubos de alimentação, usados para injetar nutrientes à força nos corpos subnutridos, são símbolo de status entre um grupo de meninas. Fecho os olhos com vontade de dizer-lhes, "sejam gordas, meninas, sejam gordas".